"Se - aprender a viver - ainda está por fazer, só pode acontecer entre a vida
e a morte. Nem em vida nem somente na morte. O que acontece entre os dois,
e entre todos os "dois" de que se goste, como entre a vida e a morte, só pode
ser mantido com alguns fantasmas..."[i] [tradução livre]
Seguindo o pensamento de Derrida, a morte não mais contrapõe a vida, mas a própria vida contrapõe-se com suas relações fantasmagóricas. Ele coloca em questão a própria ideia do "eu". O que resta entre a vida e a morte não é um caminho dicotômico, mas suas relações fantasmagóricas entre suas im/possibilidades, em outras palavras, é o emaranhado sobreposto de todas as possibilidades e todas as impossibilidades.
Para desdobrar o conceito de im/possibilidades, Karen Barad argumenta que não há uma essência fixa para a medição da matéria uma vez que as condições de suas "possibilidades" são ao mesmo tempo as condições de suas impossibilidades. Ao invés de "ser", a matéria tem a ver com "tornar-se" determinada pela matéria e pelo significado.[ii] Barad nos faz lembrar o gato de Schrödinger. Uma experiência teórica na qual um gato hipotético é trancado em uma "máquina estilo Rube Goldberg- acoplando um átomo radioativo a um contador Geiger, a um martelo e a uma garrafa de veneno ao destino do gato".[iii] Seu estado pode ser considerado simultaneamente vivo e morto até ser observado. Barad descreve o conjunto de possibilidades como segue:
“… não é o caso de que o gato esteja vivo ou morto e que simplesmente não sabemos qual; nem que o gato esteja vivo e morto simultaneamente (esta possibilidade é logicamente excluída uma vez que "vivo" e "morto" são entendidos como estados mutuamente exclusivos); nem que o gato esteja parcialmente vivo e parcialmente morto (presumivelmente "morto" e "vivo" são entendidos como todos ou nada); nem que o gato esteja em um estado definitivo de não estar vivo e não morto (neste caso presumivelmente não se qualificaria como um (uma vez) ser vivo). ”[iv]
O que Barad resume acima é um estado de in/determinação. Em oposição ao "desconhecimento", ela descreve a in/determinação como um "dinamismo que implica seu próprio desfazer a partir de dentro."[v] In/determinação é um estado que não viaja em uma metafísica de presença, ameaçando a ideia de continuidade, em suas palavras, é um estado de "virtualidade", ou, como o estado do gato, uma "não/existência fantasmagórica.”[vi] Para ela, este estado perturba a oposição entre viver e morrer, sem ignorar suas diferenças materiais, mas reconhecendo todas as possibilidades de coexistência.[vii]
De acordo com Karen Barad, "a matéria é sempre apanhada pelo dinamismo in/determinado do nada."[viii] É exatamente dentro deste dinamismo que a matéria existe em relação a sua virtualidade, em uma experiência contínua com todas as possíveis e impossíveis intra-ações com suas 'partículas virtuais', e em suas palavras é "o quanta do in/determinado jogo do nada."[ix]
Intra-ação[x], como aponta Barad, consiste em um "conjunto infinito de possibilidades, ou soma infinita de histórias, implica em uma partícula se tocando, e depois essa se tocando, e transformando, e tocando outras partículas que compõem o vácuo, e assim por diante, ad infinitum."[xi] É precisamente no momento do 'retorno', um toque de si e dos outros, que perturba as concepções dominantes de espaço, tempo, matéria, causalidade e nada.[xii] Isto quer dizer que existe um número infinito de possibilidades, e no momento de auto-intra-ações representa o encontro com a alteridade infinita do eu.
Portanto, Barad questiona não apenas a própria natureza do eu, mas também o espaço e o tempo, uma vez que nenhum deles poderia ser homogêneo, nem unilinear, portanto, nunca vazio.[xiii] Ela sugere que a responsabilidade de desvendar a linha entre "eu" e "outro", "passado", "presente" e "futuro", "aqui" e "agora", "causa" e "efeito", é tomada não por considerá-las como o entrelaçamento de entidades separadas, mas sim para colocá-las em relação umas com as outras,[xiv] em suas palavras:
"...a constituição de um "Outro", implica um endividamento para com o "Outro", que está irredutivelmente e materialmente vinculado, enroscado, ao "eu" - uma difração/dispersão de identidade. A 'alteridade' é uma relação emaranhada de diferença (différance). A ética implica a não coincidência consigo mesmo."[xv]
Esta ética das relações implica em possibilidades de reelaboração dos efeitos do passado e do futuro. No entanto, reconfigurar o passado não significa que ele possa ser alterado ou reparado - não é a reconstrução de narrativas. Uma vez que não tomamos o passado como dado, recriamos possibilidades para a responsabilidade de construir um futuro melhor. Em vez de ver a interconexão de todos os seres como um só, Barad sugere uma relação específica da diferenciação contínua do mundo, uma relação de obrigação envolvida por vestígios de outros.
Para Barad, existe um aspecto colonizado no qual a ideia construída de continuidade divide natureza e cultura, dando à humanidade o conhecimento e controle sobre tudo o mais.[xvi] Ela propõe uma mudança através do olhar para um sentido fantasmagórico de "des/continuidade" - uma "des/união de tempo e espaço", "emaranhado de aqui e ali, agora e em diante."[xvii]
É na sobreposição da matéria e em sua virtualidade que Mark Fisher se aproxima das teorias de Barad, desfazendo radicalmente noções clássicas de identidade.[xviii] Ele defende a "agência do virtual", como um ato sem existência física, assim, ele vê a necessidade de uma abolição radical da própria identidade.[xix] Fisher recorre ao conceito de hauntologia de Derrida, abrindo seu entendimento em duas direções diferentes. A primeira refere-se ao que "não está mais" acontecendo, mas permanece eficaz como virtualidade, enquanto a segunda refere-se ao que "ainda não aconteceu", no entanto, já é eficaz no virtual. A virtualidade então vem a ameaçar o estado atual das coisas.[xx]
Uma vez ameaçado o estado atual das coisas, o que está em jogo não é a sensação de que algo não pertence mais ao mundo como sabemos, mas que ainda não é visível no futuro que estamos treinados a esperar, portanto, precisa ser sacrificado.[xxi] Como um processo revolucionário de abolição da identidade, sacrificar o eu não significa que o eu não deva mais existir, mas que ainda não esteja presente nas construções dentro dos conceitos que conhecemos.[xxii] Sarcasticamente, Fisher aponta os aspectos alegres da ruptura das identidades existentes como âncoras para os significados, uma vez que a perspectiva prevalecente de futuros é desenhada sobre (e não uma surpresa) lentes brancas, masculinas e/ou heterossexuais.[xxiii]
[i] (Derrida, 1994, p. xviii)
[ii] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 254)
[iii] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 251)
[iv] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 251)
[versão original]“… it is not the case that the cat is either alive or dead and that we simply do not know which; nor that the cat is both alive and dead simultaneously (this possibility is logically excluded since ‘alive’ and ‘dead’ are understood to be mutually exclusive states); nor that the cat is partly alive and partly dead (presumably ‘dead’ and ‘alive’ are understood to be all or nothing states of affair); nor that the cat is in a definitive state of being not alive and not dead (in which case it presumably wouldn’t qualify as a (once) living being).”
[v] (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 62)
[vi] (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 78)
[vii] (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 78)
[viii] (Barad, After the end of the world: Entangled nuclear colonialism, matters of force, and the material force of justice, 2020, p. 91)
[versão original] “matter is always caught up with the in/determinate dynamism of the nothingness.”
[ix] (Barad, After the end of the world: Entangled nuclear colonialism, matters of force, and the material force of justice, 2020, p. 91)
[x] Karen Barad reconhece que entidades, agências e eventos distintos emergem de/através de sua intra-ação. Eles são distintos apenas em um sentido relacional a seu emaranhado mútuo. Para Barad, a intra-ação reelaborou a noção tradicional de causalidade. (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 267)
[xi] (Barad, After the end of the world: Entangled nuclear colonialism, matters of force, and the material force of justice, 2020, p. 93) também em (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 82)
[versão original] “infinite set of possibilities, or infinite sum of histories, entails a particle touching itself, and then that touch touching itself, and transforming, and touching other particles that make up the vacuum, and so on, ad infinitum.”
[xii] (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 81)
[xiii] (Barad, After the end of the world: Entangled nuclear colonialism, matters of force, and the material force of justice, 2020, p. 94) também em (Barad, Troubling Time/s and Ecologies of Nothingness: Re-turning, Re-membering, and Facing the Incalculable, 2017, p. 82)
[xiv] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, pp. 264-6)
[xv] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 265)
[versão original] “…the constitution of an ‘Other’, entails an indebtedness to the ‘Other’, who is irreducibly and materially bound to, threaded through, the ‘self’ – a diffraction/dispersion of identity. ‘Otherness’ is an entangled relation of difference (différance). Ethicality entails noncoincidence with oneself.”
[xvi] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 249)
[xvii] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 240)
[xviii] (Barad, Quantum entanglements and hauntological relations of inheritance: Dis/continuities, SpaceTime enfoldings, and justice-to-come, 2010, p. 251)
[xix] (Fisher, 2014, p. 18)
[xx] (Fisher, 2014, p. 18)
[xxi] (Fisher, 2014, p. 21)
[xxii] (Fisher, 2014, p. 21)
[xxiii] (Fisher, 2014, p. 21)