Aqui-agora, 2021, a interferência dos seres humanos no planeta Terra é um assunto recorrente quando relacionado a temas como mudança climática, poluição, desperdício, produção de plástico, indústria atômica, desmatamento, ocupação geográfica, colonização. Somando-se a estes fatores, estamos atualmente enfrentando uma crise pandêmica (SARS-CoV-2). Estes elementos são colocados sob o domínio ocidental do capitalismo, colonização e patriarcado, moldando a compreensão da história, afetando padrões e comportamentos entre as espécies, bem como dentro das sociedades. No entanto, seus efeitos podem potencialmente levar a consequências extremas, como a extinção.
Com relação à crise pandêmica, o colunista do 'The Guardian' Owen Jones escreveu no início de 2020 que "enquanto o coronavírus é compreensivelmente tratado como um perigo iminente, a crise climática ainda é apresentada como uma abstração."[i] Ele está preocupado com o fato de que, ao contrário de uma pandemia global, as consequências da mudança climática não são fáceis de visualizar, é facilmente confundido como casos particulares, e muitas vezes projetado como uma consequência futura. No entanto, mesmo quando os incêndios florestais se espalham pelas cidades, os danos causados pelos ciclones são irreversíveis, ou enchentes ilustram mudanças climáticas extremas, não há conversas políticas sobre questões climáticas. Ele associa as pandemias à crise climática também, argumentando que o resultado da migração das espécies para altitudes mais elevadas, devido às mudanças climáticas, potencialmente as coloca em contato com doenças para as quais elas têm pouca imunidade.[ii]
As transformações climáticas, biológicas e geológicas induzidas pelo homem em nosso planeta são os elementos que dão o nome de uma era chamada de Antropocena. No entanto, Cecília Åsberg no artigo ‘Feminist posthumanities in the Anthropocene: Forays into the postnatural’ argumenta que ao assumir esta definição estamos, ao invés disso, separando os seres humanos da natureza, enquanto que para ela, a natureza não pode mais ser desvinculada dos seres humanos, da cultura ou mesmo da tecnologia.[iii] Åsberg defende um mundo onde não há posição de domínio, não há "civilização 'avançada' para dominar os outros selvagens, e nenhum humanismo universal a ser praticado através da diversidade das comunidades de nossas espécies: existem apenas naturezas sociáveis, porém pós-naturais, e relações de poder que importam para quem vive, brinca, sofre ou morre a curto ou longo prazo".[iv]
Segundo Åsberg, a abordagem neutra de um 'humanismo universal' apaga as diferenças entre o poder econômico entre os humanos (o que cria uma ideia de civilizações avançadas e não avançadas ou menos avançadas), assim como ignora as escalas de impacto ambiental, e a relação entre tecnologia, humanos e outros animais - resultado de uma dicotômica separação entre natureza e cultura.[v] Portanto, ela defende a necessidade de uma "humanidade mais que humana", que, em suas palavras, entrelaçam as "relações com a natureza e o meio ambiente, com a ciência e a tecnologia, e com encarnações vulneráveis de ambos os tipos, humana e não-humana".[vi]
Por outro lado, Donna J. Haraway se refere a uma época que ela chama de "Chthulucene". Em suas palavras, é um "lugar de tempo para aprender a ficar com o problema de viver e morrer em 'responsabilidade de resposta' a uma terra danificada".[vii] Além da tentativa de Åsberg de desconstruir o Antropoceno, Haraway reivindica um nome que possa representar as "forças e poderes sincrônicos dinâmicos contínuos dos quais as pessoas fazem parte."[viii]
É verdade que as interferências humanas na natureza têm um impacto global (com exemplos claros de cabos submarinos, continentes plásticos oceânicos, poluentes infiltrados em corpos de água, no solo e na carne), contudo Haraway destaca que sua capacidade de resposta e consequências são muitas vezes sentidas por grupos minoritários, sob um sistema de diferenciais de poder[ix], que ela aponta como resultado da colonização e do humanismo eurocêntrico.[x] Esses diferenciais de poder são frequentemente associados a posições binárias, que constrói um lugar para um "mais", ou, "menos" humano em relação a outros (por exemplo, "mais que humano", "outro que não humano", "desumano", e "humano-como-humano"[xi], "humano-máquina", "humano-animal", "mundo humano-físico"[xii]).
De fato, as consequências são o desenvolvimento de um subconjunto de hierarquias violentas, criando dicotomias como as 'selvagens-civilizadas', 'homem universal - mulheres', 'humanos - nativos, bichos, animais e outros Terráqueos Outros em geral'. [xiii] [xiv] Portanto, não há neutralidade na humanidade enquanto importa, como Haraway uma vez disse, "quais histórias contam histórias, quais conceitos pensam conceitos...importa quais figuras ilustram as figuras, quais sistemas sistematizam sistemas."[xv] E, em nome desta pesquisa, acrescentando à citação de Haraway, importa qual extinção extingue extinções. Haraway exige 'responsabilidade e capacidade de resposta', a capacidade de responder, de manter aqui e agora, a fim de se envolver com outros inesperados, mas, reconhecendo um estado contínuo de nossa sociedade contemporânea, para manter o problema, para questionar as estruturas sociais e suas relações de poder.
[i] (Jones, 2020)
[versão original] “[w]hile coronavirus is understandably treated as an imminent danger, the climate crisis is still presented as an abstraction.”
[ii] (Jones, 2020)
[iii] (Åsberg, 2018, p. 186)
[iv] (Åsberg, 2018, p. 197)
[versão original] “no ‘advanced’ civilization to master the wild Others, and no universal humanism to be practiced across the diversity of our species communalities: there are only sociable yet postnatural natures and power relations that matter for who gets to live, play, suffer, or die in the short or long run.”
[v] (Åsberg, 2018, p. 187)
[vi] (Åsberg, 2018, p. 192)
[vii] (Haraway, 2016, p. 2)
[versão original] a “timeplace for learning to stay with the trouble of living and dying in response-ability on a damaged earth.”
[viii] (Haraway, 2016, p. 101)
[ix] (Åsberg, 2018, p. 186)
[x] (Åsberg, 2018, p. 189)
[xi] (Haraway, 2016, p. 101)
[xii] (Åsberg, 2018, p. 190)
[xiii] (Åsberg, 2018, p. 193)
[xiv] A perspectiva escalar também é bem discutida por João Arriscado Nunes em sua análise de Boaventura de Sousa Santos, colocando a universalidade em conflito, entendendo diferentes formas de globalização hegemônica levantadas sob uma perspectiva 'interescalar'. Nunes argumenta que compreender a relação escalar que distingue dinâmicas e formas de globalização, e identificar seu processo de hegemonia, nos permitiria criar alternativas emancipatórias. (Nunes, 2019, pp. 340-344)
[xv] (Haraway, 2016, p. 101)
[versão original] “which stories tell stories, which concepts think concepts…it matters which figures figure figures, which systems systematize systems.”